Passei
pela vida a estudar em vários colégios antes de entrar na Universidade, mas o
que gravado ficou mesmo, e bem fundo, no recôndito da memória, foram os dias
passados no internato do Instituto de Educação “Sagrado Coração de Jesus”, de
Canoinhas, nome longo e pomposo e que para nós continua sendo sempre “O
Colégio”, o nosso Colégio, o Colégio de minha infância, infância onde
entrei menina e adolescente ainda saí.
Por
mais que eu fale, conte, narre, descreva a rotina de nosso dia-a-dia, entremeada
com as nossas múltiplas anti-rotinas, jamais tudo será escrito. Porque cada uma
de nós, as alunas internas que por lá passaram, teria as suas histórias para
contar, cada qual com a vista do seu próprio ponto, com o olhar do seu próprio
ângulo.
Os
dias corriam céleres dentre tantas coisas a se fazer. De manhã, as aulas. Após
o almoço, um curto recreio apenas para apaziguar a mente. Recreio passado ali
dentro mesmo nos varandões de nossa casa onde se podia jogar peteca, as nossas
fabulosas petecas feitas de palha de milho e penas de galinha. Que eram as
longas penas das asas e as longas penas do rabo dos galos.
O
jardim era O Jardim. Um Jardim de sonhos, um jardim a que Irmã Maristela
dedicava suas horas de lazer. Jardim encantado que começava a se estender desde
o chão com as graciosas miosótis e as “mimosas
violetas escondidas entre a folhagem de ramagem tão gentil”. Um pouco acima
floriam gérberas, margaridas, copos-de-leite, lírios. Depois os ramos
espinhentos ostentando as mais belas e coloridas rosas. Mais alto, em arbustos
outros, camélias e jasmins encantando a visão e o olfato com seus maravilhosos
aromas. Flores que depois iriam para os vasos deixando a nossa capela e as
nossas salas de aula sempre coloridas e aconchegantes.
Os canteiros eram margeados por fileiras compridas de vermelhos tijolos colocados
um
por um, em forma diagonal. E, assim, vermelhos e enfileirados marcavam o limite
entre as flores e a verde relva dos caminhos.
Era
um jardim poético, o Jardim de Irmã Maristela, que depois de meu tempo Madre
foi também. Foi nossa professora de Língua Portuguesa e entendia e muito tanto
de gramática como de literatura e nos brindava sempre com a leitura dos nossos
grandes clássicos. E ainda era uma das preceptoras das internas. Junto com Irmã
Nízia, em meu primeiro ano no Sagrado Colégio. E depois com Irmã Felícitas.
Desse
recreio, passado nos jardins ou nos varandões, e em todos os demais recreios,
sempre havia um sino a nos chamar, avisando que chegada era a hora de,
solenemente, nos instalarmos em nossa sala de estudos para colocarmos as nossas
lições em dia.
E nunca era pouca coisa. Estudar os pontos de geografia, de história, de religião. Era lição de casa de português, de aritmética. Em nosso primário curso não se
falava
ainda em Matemática. No curso Fundamental, que viria depois, estudava-se,
separadamente, Aritmética, Álgebra e Geometria. E havia ainda um texto de nosso
livro de leitura que deveria ser bem estudado para, no dia seguinte, ser lido
em sala de aula, sem gaguejar ou sem as consagradas pausas onde uma vírgula,
onde havia um ponto.
Esta
sala de estudos era especial. Uma grande sala onde coubessem todas as internas.
Carteiras enfileiradas sem corredor no meio. Havia duas portas, uma dupla,
lateral, que dava para o varandão e uma menor, simples, nos fundos, que dava
para as escadarias. E em uma das
paredes, oposta aos janelões, uma grande prateleira que começava quase ao rés
do chão e tinha uma altura especificamente adequada à altura das alunas da
chamada “ala das grandes”. Sua largura
se estendia entre as portas.
E
cada interna tinha um lugar para colocar os seus pertences. Um lugar previamente
demarcado com seu nome. Ali se colocavam os trabalhos manuais, como bordados,
tricôs, crochês com os respectivos fios e as respectivas agulhas e o que mais
as carteiras não comportassem.
Bem
no alto, acima da grande prateleira, uma enorme faixa, artisticamente bordada
com imperiosa ordem escrita:
“Um
lugar para coisa e cada coisa no seu lugar”.
E
se assim não fosse, a arrumação só poderia ser realizada no decorrer de algum
dos recreios...
Esta
era a nossa sala de estudos, o nosso aconchego, um lugar com direito a
divagações. O nosso canto silencioso de todas as tardes, de um pedacinho do
tempo de antes do dormir, em todas as noites, e de algumas horas em todas as
manhãs de domingo e de dias santos.
Nesta
sala de estudos escrevemos as nossas adolescentes e líricas histórias. Nela
rabisquei, em toscos versos, as primeiras dores da alma. Programamos os dias
que estariam a nossa espera. Firmamos
amizades. Choramos as mágoas conjuntas. Fizemos os nossos deveres. Escrevemos
as intermináveis páginas repetindo a mesma frase do que não mais deveria ser
feito ou do que deveria, por obrigação, se fazer. Ali escrevemos imaginários
convites de casamento com o nome de colegas e seus namorados. Ali muitos
rabiscos meus, em forma de redações, foram escritos em troca de flores bordadas
em uma grande toalha de banquete. Se assim não fosse ela jamais ficaria pronta.
Pontualmente uma campainha nos chamava
para o recreio e mais pontualmente ainda nos conduzia de volta às salas. Ou de
estudo o de aula. A mesma campainha que nos acordava. A mesma campainha que
regia o nosso tempo.
E esta campainha era soada sempre pelas
hábeis mãos de Irmã Amanda, uma freira que tinha olhos de lince. Os ponteiros
de seu relógio estavam sempre sendo conferidos pelos ponteiros do relógio da
Igreja Matriz. Que distava algumas dezenas de metros, em linha reta, do
colégio.
Na sala de pintura havia um rádio em
que algumas Irmãs ouviam os noticiários. E no qual a nossa Irmã Amanda
conferia, também, o seu relógio pela Rádio Relógio Federal, uma rádio que, de
segundo a segundo nos dava a hora certa.
Mas Irmã Amanda, como já escrevi em
algumas páginas anteriores, arrumava o altar da capela e a sacristia e ajudava
o padre em seus ritos litúrgicos.
Mas, para mim, o mais importante nela
era a sua função de mestra. Quando cursei o segundo ano do ensino fundamental,
que depois seria equivalente ao ginásio, era ela a professora de todas as
matérias, com exceção da língua inglesa que era ministrada por Irmã Felícitas.
Descrevia, com entusiasmo, a história
do mundo. Era impressionante o seu conhecimento sobre tudo, enfim.
Mas o que mais marcou sua presença
entre nós foi seu gênio humorístico. Tinha sempre algo jocoso para dizer.
Famoso era o seu refrão:
“Estas meninas me deixam de cabelos azuis”. Porque deixar de cabelos brancos seria para o comum dos mortais. E Irmã Amanda não era uma pessoa comum.
Ela dizia não ouvir bem e que Deus a
compensara com uma visão especial. O que seria de nós se ela ouvisse bem...
O
que muito me impressionava era o porte altivo e nobre de uma outra freira que
não participava de nosso convívio nas salas de estudo ou de arte. Mas era de
suas mãos que provinha a maior parte de nossas refeições. Irmã Cristiana era
uma pessoa de porte muito alto e, solenemente carregava seus fardos de feno
para tratar das vacas. Ou levava as ferramentas com que cuidava da horta. Era
uma figura que me impressionava. Não combinava, a meu ver, aquele ar de nobreza
que de suas faces emanava com o serviço que desempenhava.
Nas
vezes em que arriscávamos sair para o pomar ela sempre, com um sorriso, nos
entregava algum dourado pêssego ou alguma fresca maçã.
Um
dia ficamos sabendo que ela era uma condessa da casa real da Áustria. Ou seria
da Alemanha? O que importa é que o seu ar majestoso sempre me impressionara. E
ela a tudo renunciara por uma vocação. Para ser tão somente uma humilde serva
de Cristo dentro dos quintais e estrebarias de um convento do sul do Brasil.
Jamais
tudo será dito ou escrito sobre o nosso Colégio. Muitas águas, ou melhor,
muitas linhas ainda irão rolar até que eu consiga esgotar, pelo menos, as
minhas lembranças.
Escrito por Adaír DittrichIrmã Amanda Gehrer |
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